QUEM NÃO LEMBRA DESSA FIGURA TOCANDO SUA RABECA SOLITÁRIA NA CIDADE ALTA


HOMENAGEM A ANDRÉ, O RABEQUEIRO DA SORVETERIA TROPICAL

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Quem bem lembrou da figura folclórica de André da Rabeca foi o poeta Carlos Gurgel, em seu face. Isso por ocasião do Dia do Músico, no último sábado, que passou meio batido por aqui. E lembrei dessa matéria que escrevi há cinco anos, para o Diário de Natal, para André, o rabequeiro da Sorveteria Tropical, clicado acima por Sandro Fortunato.Rabequeiro esquecido durante décadas ganha fama após a morte na provínciaA rabeca tem som fanhoso, rústico. É o primo pobre do violino. Quem escuta viaja pelo Cariri nordestino e encontra cirandas, xaxados, brincadeiras de roda. No último domingo, uma rabeca se calou. Ela era como seu dono: de melodia triste, surrada; parecia perdida na selva de pedras, longe do interior conhecido. André da Rabeca mais parecia uma estátua, dessas que de tão habitual à paisagem sequer é notada. Não fosse o som da rabeca tão triste quanto seu olhar, morreria feito indigente. E faltou pouco.André lembrava pouco de sua própria história. Vivia perdido no tempo. Quando se achava era nas quatro cordas da Rabeca – quase uma namorada. Falava pouco e era difícil de entender. O olhar, mesmo estrábico, falava mais. E os olhos pareciam guardar as tristezas dos poetas nascidos tristes. Das lembranças insistentes, o nascimento no município de Santo Antônio do Salto da Onça, e a idade: 67 anos. Dizia também ser casado. Os três filhos moram no sítio da família, em Mendes. Lá, o rabequeiro cuidava do roçado quando moço.André morava em Mãe Luíza antes do enfisema pulmonar fatal de sábado. Era para onde voltava após assistir, durante algumas horas, casais e famílias na sorveteria mais tradicional da cidade. Lá, sentado em bancada de alvenaria, dedilhava a rabeca esporadicamente. Tocava cirandas ou clássicos da música popular nordestina. Conseguia algum trocado, despejado em um boné velho. O dinheiro às vezes pagava o almoço do outro dia. Só às vezes. Era assim também no outro ponto fixo, na Cidade Alta, nas imediações da Princesa Isabel. Lá, o rabequeiro sentava no meio-fio da calçada e tocava para os passantes que só passavam.Talvez, na juventude esquecida, nunca imaginara ganhar o sustento pela rabeca que sequer lembra como aprendera a tocar. De certo, alguma influência pernambucana. Muitas canções vêm de lá. A mulher não trabalha. Quando surge alguma encomenda, produz tamborete, mesa, cama… Foi o que André disse à revista Brouhaha em junho de 2008. Já naquela época, a repórter Patrícia Britto notara a cuspideira constante de sangue. André afirmara ter passado “um tempo no Hospital Colônia João Machado, e depois no Giselda Trigueiro”.Há bons meses, o repórter o encontrou no recanto habitual, na bancada da sorveteria. Era noite. O olhar era o mesmo, fixo em qualquer canto. Parecia perdido à procura do passado ou angustiado quanto ao futuro. Talvez fosse mesmo seu olhar naturalmente melancólico. Ao pedido de qualquer música de Lua Gonzaga, o rabequeiro encosta a rabeca descascada no pescoço e desliza o arco de crina sobre as cordas. Vem apenas a introdução de Asa Branca. André pára de súbito e volta ao olhar fixo, perdido. O repórter coloca a moeda no boné e após a saída do local, o rabequeiro retoma a música. Pareceu agradecimento pelo pouco ou quase nada.Afora a matéria da Brouhaha, André nunca mereceu atenção da mídia. Tão logo se espalhou a notícia de sua morte, o microblog publicou lembranças do esquecido rabequeiro: “uma triste notícia”. “A maior perda da cena cultural natalense desde Milton Siqueira”… No youtube, um vídeo gravado pelo paulista Ayres Marques – que marcou época em Natal nos anos 80, com o movimento cultural Babilônia – ultrapassou rapidamente os mil acessos. Mostra André Rabequeiro em performance no Dia da Poesia.Em poucos dias, André da Rabeca será mais um José Helmut Cândido (o eterno carteiro de Cascudo, o filósofo das ruas), mais um mero personagem intrigante da história da província, esquecido ou apenas lembrado como uma imagem desbotada no meio da rua.

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