
Na esteira do projeto da chamada dosimetria, a Câmara dos Deputados aprovou mudanças que desmontam um dos poucos pontos considerados consensuais da Lei Antifacção, votada pelo Senado horas antes. As alterações reduzem de forma significativa o tempo mínimo de permanência em regime fechado para chefes do crime organizado, milicianos, autores de crimes hediondos e feminicidas, contrariando o endurecimento aprovado anteriormente pelos próprios parlamentares.
O movimento teve como objetivo declarado aliviar a situação do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e de oficiais-generais condenados pela tentativa de golpe após as eleições de 2022, mas acabou produzindo efeitos muito mais amplos.
Se o texto da dosimetria for aprovado como está pelos senadores, após a sanção da Lei Antifacção, o impacto atingirá nomes como Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, e André de Oliveira Macedo, o André do Rap.
Isso porque o projeto reduz de um terço para quase a metade o tempo de cumprimento da pena em regime fechado antes da progressão ao semiaberto, revertendo dispositivos aprovados na própria Lei de Execuções Penais poucos dias antes.
A contradição aparece logo no início do texto aprovado pela Câmara, inclusive com votos de deputados como Guilherme Derrite (PP-SP), que havia celebrado publicamente o rigor do projeto antifacção. O relator da dosimetria, Paulinho da Força (Solidariedade-SP), alterou novamente o artigo 112 da Lei de Execuções Penais, restabelecendo como regra geral a progressão com apenas um sexto da pena, para depois listar exceções nos incisos.

No primeiro inciso, a dosimetria fixa em 25% o tempo mínimo em regime fechado para crimes cometidos com grave ameaça ou violência contra a vida ou o patrimônio. Com isso, ficam de fora crimes contra a administração pública, a fé pública, a saúde pública e crimes sexuais, o que representa um afrouxamento adicional em relação ao texto anterior.
Na prática, como mostrou Marcelo Godoy do Estadão, para favorecer Bolsonaro e os generais, o Congresso abriu brecha também para beneficiar abusadores sexuais.
Outros criminosos ajudados
A incoerência se aprofunda nos crimes hediondos. Enquanto a Lei Antifacção previa 70% da pena em regime fechado para réus primários e 75% nos casos com resultado morte, a dosimetria reduz esses percentuais para 40% ou 50%, conforme o caso.
Para líderes de facções, milicianos e autores de feminicídio, o novo texto fixa entre 50% e 55% de cumprimento da pena, contra os 75% previstos na lei aprovada pelo Senado.
Os incisos VI, VII e VIII da dosimetria deixam explícito o recuo: “VI – Se o apenado for condenado por exercer o comando, individual ou coletivo, de organização criminosa estruturada para a prática de crime hediondo ou equiparado, deverá ser cumprido ao menos 50% (cinquenta por cento da pena); VII – Se o apenado for condenado pela prática do crime de constituição de milícia privada, deverá ser cumprido ao menos 50% (cinquenta por cento) da pena; VIII – Se o apenado for condenado pela prática de feminicídio e se for primário, vedado o livramento condicional, deverá ser cumprido ao menos 55% (cinquenta e cinco por cento) da pena”.
Já a Lei Antifacção havia estabelecido 75% de cumprimento da pena para esses mesmos crimes, além de percentuais ainda maiores para reincidentes. Ao restabelecer parâmetros antigos da LEP, a dosimetria reduz para 60% o tempo de prisão para reincidentes em crimes hediondos e para 70% quando há resultado morte.
O risco vai além do discurso político. O professor de Direito e procurador-regional da República Vladimir Aras alertou que o projeto pode gerar milhares de revisões de pena em todo o país.
“A lei não beneficiará apenas as pessoas comuns condenadas pelo 8 de janeiro. A norma não se limitará aos delitos ‘deste Capítulo’… Pelo princípio da analogia ‘in bonam partem’, centenas de milhares de criminosos condenados em concurso de crimes serão beneficiados com as recontagens de suas penas, para menos!”, escreveu.
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